terça-feira, 23 de julho de 2019

A vida do antigamente nas serranias



A vida das gentes de Chã de Alvares foi bem dura até á década de setenta ,quando finalmente chegou a luz elétrica à aldeia, e com o fim da ditadura em Portugal. Até então o panorama geral era de extrema miséria da quase totalidade das gentes locais, que dependiam como servos das famílias abastadas para quem trabalhavam, num regime feudal que se mantinha há séculos.
A fome foi durante muitos anos preponderante, amanhava-se a terra com tudo o que houvesse para nela semear, sendo que a generalidade dos recursos alimentares provinha direta ou indiretamente dos solos.
Numa sociedade profundamente religiosa o ritmo da vida quotidiana regulava-se pelo toque do sino. Pela Alvorada,tocavam as Avé-Marias,depois ,voltava a tocar para a missa da manhã,e à tarde soavam as trindades e á noite avisava para a oração.
O sino era um símbolo referido nos livros do ensino primário como essencial à vida de comunidade. Este ritmo era sintomático do poder religioso exercido nas gentes.
Às refeições nada podia ser desperdiçado, e o sortido de iguarias era mínimo,assentando a dieta básica no prato de feijões com couves e sopa de legumes.
Um alimento indispensável na alimentação de todos os dias era o pão de milho, ou a broa sendo hábito amassa-la á noite para de manhã, ir a cozer.
Para conduto faziam-se chegar as sardinhas que eram compradas uma vez por semana quando estas chegavam á povoação pelas sardinheiras que semanalmente rumavam a Miranda para as comprar a intermediários.
Consoante o número de dependentes do agregado familiar e as capacidades financeiras, a quantidade de sardinhas variava entre a dúzia, o quarteirão ou o meio cento. Após a aquisição e o transporte, a sardinha era destripada e estendida sobre caruma dentro de uma cesta de verga, de modo a permitir escorrer, sendo esta a forma possível de a manter conservada, ainda que chegasse ao fim praticamente ressequida e desidratada. A cesta ficava presa na trava da chaminé, fora do alcance das crianças.
Cada sardinha em casa de gente humilde tinha que dar para três cachopos. A cabeça para o filho mais velho, o rabo para o do meio e o mais novo cabia o meio da sardinha.
A quando das datas especiais as refeições eram intercaladas por ementas onde tinham lugar o arroz, massas e carnes.
Raras eram as casas que compravam carne, a maioria governava-se durante o ano com carne do porco que criavam. A criação de galinhas tinha como intuito primeiro a comercialização dos ovos e só raramente se sacrificava o animal.
Os serões eram passados a ouvir longas historia à lareira em família. Eram contadas historias de lendas e superstições que pela tradição oral passaram de geração em geração,muitas das quais baseadas nas Fábulas de La Fontaine ou de Hans Christian Andersen. Muitas tinham como personagens principais os Lobisomens ou as bruxas da Relva do Lapão ou mesmo o Buiça,nome pelo qual em tempos aqui foi batizado o “bicho Papão”.
Não havendo água da rede pública, ou privada, a forma possível de aceder à água era por meio do recurso as nascentes da povoação. No Casal de Baixo,recorria-se à mina do Vale Palheiro ou á Fonte da Bica, no Valado. Um cântaro de água diariamente teria de chegar para as necessidades domésticas e preparação das refeições. Limpeza da casa, lavagem da louça e para a higiene diária, caso contrário teria de ser percorrido um longo trajecto diversas vezes
À margem da pobreza reinante viviam em Chã de Alvares famílias que possuíam a quase totalidade de terrenos aráveis. A distância entre as duas realidades era enorme. Enquanto a população em geral vivam em casas de xisto acanhadas, e em péssimas condições de higiene os mais abastados viviam em casas de reboco pintadas a branco, com dimensões bastante distintas. Enquanto a maioria permanecia analfabeta, os mais poderosos mandavam os seus filhos estudar medicina, advocacia ou até mesmo teologia, sendo que foram inúmeros os padres nascidos em Chã de Alvares. Enquanto o povo passava fome as famílias abastadas faziam férias de verão na Figueira da Foz, e aos fins-de-semana recebiam em suas casas ou conviviam em pic nics nas suas Quintas.
Era ainda comum terem uma segunda residência geralmente designada Quinta, onde passavam, largas temporadas. Eram Quintas, não só de recreio, mas com características altamente agrárias, possuindo celeiros, lagares, tanques de rega, pomares, hortas e olivais. O Padre possuía a Quinta da Telhada,herdada posteriormente pela família Lopes Ladeira, a família Henriques de Matos a Quinta da Carrasqueira e a família Rebelo a Quinta do Porto,Quinta do Soutelinho,Quinta da Engeiriça e a Quinta do Lagar e os Henriques de Almeida a Quinta do Barroquinho.

A pobreza era rainha entre as gentes de toda esta região serrana. Havia igualmente um costume de pessoas mais abonadas ,ao falecerem deixarem em testamento verba para distribuir pelos mais necessitados.
Maria da Encarnação, esposa de Manuel da Mota , quando falece em 1918,com 70 anos deixa 20 escudos para distribuir pelos mais pobres da Chã de Alvares:
Maria Joana (1843- 1923)-solteira
Maria do Rosário -(1848-1923)-solteira
Justina Maria
Maria Emília do Chico
Manuel Barata
Curiosamente todos de Casal de Baixo
Em 1915,João Ferreira Fontes a viver em São Paulo,Brasil,envia para serem distribuídos pela população necessitada, 50 escudos.

Eram estas as famílias que detinham nas suas mãos o poder económico,possuindo a quase totalidade de terras,comércio e Industria.
Restavam apenas pequenos negócios nas mãos de famílias mais remediadas e que geriam as Tabernas e Vendas que proliferavam pela povoação.
Quem de forma brilhante descreveu a triste condição do pobre e da relação destes com as famílias abastadas foi o escritor António Lobo Antunes.

"Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.
Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:
- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.
O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:
- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.
Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto
(- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro)
de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico
- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho
o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:
- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu
Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros
- O que é que o menino quer, esta gente é assim
e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.
Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse"...



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