A vida das
gentes de Chã de Alvares foi bem dura até á década de setenta
,quando finalmente chegou a luz elétrica à aldeia, e com o fim da
ditadura em Portugal. Até então o panorama geral era de extrema
miséria da quase totalidade das gentes locais, que dependiam como
servos das famílias abastadas para quem trabalhavam, num regime
feudal que se mantinha há séculos.
A fome foi
durante muitos anos preponderante, amanhava-se a terra com tudo o que
houvesse para nela semear, sendo que a generalidade dos recursos
alimentares provinha direta ou indiretamente dos solos.
Numa
sociedade profundamente religiosa o ritmo da vida quotidiana
regulava-se pelo toque do sino. Pela Alvorada,tocavam as
Avé-Marias,depois ,voltava a tocar para a missa da manhã,e à tarde
soavam as trindades e á noite avisava para a oração.
O sino era
um símbolo referido nos livros do ensino primário como essencial à
vida de comunidade. Este ritmo era sintomático do poder religioso
exercido nas gentes.
Às
refeições nada podia ser desperdiçado, e o sortido de iguarias era
mínimo,assentando a dieta básica no prato de feijões com couves e
sopa de legumes.
Um alimento
indispensável na alimentação de todos os dias era o pão de milho,
ou a broa sendo hábito amassa-la á noite para de manhã, ir a
cozer.
Para conduto faziam-se
chegar as sardinhas que eram compradas uma vez por semana quando
estas chegavam á povoação pelas sardinheiras que semanalmente
rumavam a Miranda para as comprar a intermediários.
Consoante o número de
dependentes do agregado familiar e as capacidades financeiras, a
quantidade de sardinhas variava entre a dúzia, o quarteirão ou o
meio cento. Após a aquisição e o transporte, a sardinha era
destripada e estendida sobre caruma dentro de uma cesta de verga, de
modo a permitir escorrer, sendo esta a forma possível de a manter
conservada, ainda que chegasse ao fim praticamente ressequida e
desidratada. A cesta ficava presa na trava da chaminé, fora do
alcance das crianças.
Cada sardinha em casa de
gente humilde tinha que dar para três cachopos. A cabeça para o
filho mais velho, o rabo para o do meio e o mais novo cabia o meio da
sardinha.
A quando das datas
especiais as refeições eram intercaladas por ementas onde tinham
lugar o arroz, massas e carnes.
Raras eram as casas que
compravam carne, a maioria governava-se durante o ano com carne do
porco que criavam. A criação de galinhas tinha como intuito
primeiro a comercialização dos ovos e só raramente se sacrificava
o animal.
Os serões eram passados
a ouvir longas historia à lareira em família. Eram contadas
historias de lendas e superstições que pela tradição oral
passaram de geração em geração,muitas das quais baseadas nas
Fábulas de La Fontaine ou de Hans Christian Andersen. Muitas tinham
como personagens principais os Lobisomens ou as bruxas da Relva do
Lapão ou mesmo o Buiça,nome pelo qual em tempos aqui foi batizado o
“bicho Papão”.
Não havendo água da rede
pública, ou privada, a forma possível de aceder à água era por
meio do recurso as nascentes da povoação. No Casal de
Baixo,recorria-se à mina do Vale Palheiro ou á Fonte da Bica, no
Valado. Um cântaro de água diariamente teria de chegar para as
necessidades domésticas e preparação das refeições. Limpeza da
casa, lavagem da louça e para a higiene diária, caso contrário
teria de ser percorrido um longo trajecto diversas vezes
À margem da pobreza
reinante viviam em Chã de Alvares famílias que possuíam a quase
totalidade de terrenos aráveis. A distância entre as duas
realidades era enorme. Enquanto a população em geral vivam em casas
de xisto acanhadas, e em péssimas condições de higiene os mais
abastados viviam em casas de reboco pintadas a branco, com dimensões
bastante distintas. Enquanto a maioria permanecia analfabeta, os mais
poderosos mandavam os seus filhos estudar medicina, advocacia ou até
mesmo teologia, sendo que foram inúmeros os padres nascidos em Chã
de Alvares. Enquanto o povo passava fome as famílias abastadas
faziam férias de verão na Figueira da Foz, e aos fins-de-semana
recebiam em suas casas ou conviviam em pic nics nas suas Quintas.
Era
ainda comum terem uma segunda residência geralmente designada
Quinta, onde passavam, largas temporadas. Eram Quintas, não só de
recreio, mas com características altamente agrárias, possuindo
celeiros, lagares, tanques de rega, pomares, hortas e olivais. O
Padre possuía a Quinta da Telhada,herdada posteriormente pela
família Lopes Ladeira, a família Henriques de Matos a Quinta da
Carrasqueira e a família Rebelo a Quinta do Porto,Quinta do
Soutelinho,Quinta da Engeiriça e a Quinta do Lagar e os Henriques de
Almeida a Quinta do Barroquinho.
A
pobreza era rainha entre as gentes de toda esta região serrana.
Havia igualmente um costume de pessoas mais abonadas ,ao falecerem
deixarem em testamento verba para distribuir pelos mais necessitados.
Maria
da Encarnação, esposa de Manuel da Mota , quando falece em 1918,com
70 anos deixa 20 escudos para distribuir pelos mais pobres da Chã de
Alvares:
Maria
Joana (1843- 1923)-solteira
Maria
do Rosário -(1848-1923)-solteira
Justina
Maria
Maria
Emília do Chico
Manuel
Barata
Curiosamente
todos de Casal de Baixo
Em
1915,João Ferreira Fontes a viver em São Paulo,Brasil,envia para
serem distribuídos pela população necessitada, 50 escudos.
Eram estas as famílias
que detinham nas suas mãos o poder económico,possuindo a quase
totalidade de terras,comércio e Industria.
Restavam apenas pequenos
negócios nas mãos de famílias mais remediadas e que geriam as
Tabernas e Vendas que proliferavam pela povoação.
Quem de forma brilhante descreveu a triste condição do pobre e da relação destes com as famílias abastadas foi o escritor António Lobo Antunes.
"Na minha família os animais domésticos
não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os
animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o
seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus
avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a
ração de roupa e comida.
Os pobres, para além de serem obviamente pobres
(de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos
donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas
que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões;
de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de
aspirina), deviam possuir outras características
imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não
andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis
a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de
sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba,
responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que
insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:
- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da
minha Teresinha.
O plural de pobre não era «pobres». O plural
de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias
reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de
amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se
piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos
habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia
de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de
distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas,
sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora
de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres
surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas
tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:
- Não se chegue muito que esta gente tem
piolhos.
Nessas alturas, e só nessas alturas, era
permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por
correr o risco de ser gasto
(- Esta gente, coitada, não tem noção do
dinheiro)
de forma de deletéria e irresponsável. O pobre
da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos
meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma
recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal
doméstico
- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho
o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:
- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu
Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à
escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões
destas características insólitas foi-me dito com um encolher de
ombros
- O que é que o menino quer, esta gente é assim
e eu entendi que ser pobre, mais do que um
destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar
bridge ou para tocar piano.
Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do
oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que
eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob
um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de
batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso
alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me
informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da
saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a
partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico
que a minha mãe, espirrando, me ordenasse"...